As exceções à regra

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Patricia Garrote é advogada especialista em Direito de Família e Sucessões, ex-presidente da Comissão de Direito de Família da OAB-DF e membro do IBDFAM

Recente decisão do STJ consolida o que todo mundo já sabe: toda regra tem exceção. Não é diferente com o Direito, onde há mais regras do que imagina nossa vã filosofia. Uma delas, talvez a mais importante de todas, faz parte de um princípio chamado pacta sunt servanta, que, em português claro, quer dizer força obrigatória dos contratos, ou, melhor dizendo, contrato faz lei entre as partes. Será?

Vamos começar do início, que é pra ficar mais fácil. O maior e mais vital dos direitos do ser humano diz respeito à dignidade, tão imprescindível que o legislador, assim como o julgador, decidiu por bem relativizar qualquer norma, por mais relevante, em sua homenagem.

Isso significa dizer que tudo que viola, prejudica ou coloca em risco a dignidade fere um dos mais importantes fundamentos de nossa Constituição Federal e, exatamente por isso, deve ser inibido a qualquer custo. Não por outro motivo quando uma lei ou uma relação jurídica ofende direito elementar o Poder Jurisdicional pode ser acionado para coibir abusos, lembrando que a Justiça só age quando provocada a fazê-lo. Cláusulas tiranas insertas em contratos usualmente de adesão vulgarmente conhecidas como leoninas, inegavelmente desfavoráveis ou excessivamente onerosas a uma das partes em evidente desequilíbrio da relação contratual, muitas vezes inclusive favorecendo o enriquecimento indevido da outra parte, podem e devem ser revisadas à luz da lei, da melhor doutrina e jurisprudência. Na falta de lei que trate do assunto, lacunas são preenchidas com surpreendentes decisões judiciais proferidas país afora por julgadores sensíveis e atentos aos direitos, às necessidades e ao clamor da sociedade.

A título de exemplos célebres que merecem destaque temos decisões liminares e sentenças terminativas garantindo direito à liberdade a quem não foi condenado definitivamente, à alteração de nome a quem fez cirurgia de mudança de sexo ou não se sente confortável com seu nome de batismo, à substituição de um produto que se mostrou defeituoso e sem condições de uso, a alimentos a quem deles necessita, à posse turbada a quem a ela tinha direito inequívoco, a medidas protetivas contra quem comete violência no ambiente doméstico, dentre outros impossíveis de serem listados nesse curto espaço. Assim, ainda que exista uma lei ou uma cláusula contratual prevendo o contrário, se por qualquer motivo uma relação jurídica atingir de forma negativa a dignidade de uma pessoa ou coletividade, poderá a mesma ser revista, modificada, substituída ou interrompida de forma a permitir que se volte ao estado anterior ao prejuízo ou se minimizem estragos, ou mesmo sejam ressarcidos danos materiais e morais da violação advindos, reembolsados gastos porventura despendidos, compensados créditos e débitos, realizados reparos, operações, obras, entregues medicamentos, etc.

No que diz respeito ao acertado entendimento do STJ sobre o qual falamos no início de nosso artigo, ficou sedimentada a possibilidade de se manter ex-cônjuge ou companheiro no plano de saúde mesmo após o rompimento definitivo da relação conjugal, seja pelo divórcio, seja pela dissolução da união estável, caso seja comprovada a existência de dependência econômica entre o ex-casal. Assim, relativizou-se de forma definitiva o que até então era absoluto, ou seja, colocou-se um ponto final na força obrigatória dos contratos dos planos de saúde a cujas cláusulas o beneficiário é obrigado a aderir para usufruir do benefício no que tange à previsão de cancelamento do convênio do cônjuge dependente quando o casal rompe o vínculo marital. Agora, esse preceito contratual depende das peculiaridades do caso, não é mais imutável.

É certo que o beneficiário tem direito de pedir o cancelamento do plano de saúde do dependente do qual se separou de forma definitiva, bem como é lícito ao plano de saúde cancelar o convênio do dependente cujo vínculo não mais subsiste, ou que atingiu a idade-limite prevista no contrato. Só que, como já mencionado, em Direito nada é absoluto, muito menos no Direito de Família, em que as soluções não são matemáticas, muito pelo contrário, passam pela afetividade e, principalmente, pela individualidade, obrigando o julgador a adaptar a lei ao caso concreto a fim de melhor atender os interesses e as necessidades de quem busca tutela de direitos primários na Justiça.

Assim, impõe-se reconhecer que as exceções à regra passam pelo estudo de caso, até porque não há como impor o cumprimento de regras contratuais que não foram elaboradas por todos os envolvidos na relação jurídica, o que derruba a tese questionável de que contratos foram feitos para serem cumpridos à risca, doa a quem doer. Quando uma parte da relação contratual obtém mais vantagens que a outra, onerando excessivamente a parte mais frágil ou dando causa a enriquecimento ilícito, o desnível dos pratos da balança demonstra de forma cabal a necessidade da intervenção inteligente e imparcial de um terceiro – no caso o poder jurisdicional – com interesse genuíno de restabelecer a ordem, a paz e o equilíbrio social, ratificando entendimento pra lá de sedimentado de que nenhum contrato tem poder de se sobrelevar à cláusula pétrea inserta no artigo 1º, III, de nossa Lei Maior. Irretocável.

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