Por Carlos Thadeu
Economista-chefe da CNC (Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo)
O crédito tem despontado como o atual indutor ou motivador do consumo das famílias. Com a renda pressionada pela inflação, os consumidores têm utilizado o crédito como saída para o consumo, inclusive de itens de 1ª necessidade, como alimentos e medicamentos. Seria uma tempestade perfeita. Porém, mesmo os desembolsos de recursos às famílias crescendo desde o início do ano, com a curva do endividamento seguindo tendência cada vez mais inclinada, a inadimplência sob controle é a surpresa positiva no contexto do recorde na contratação de dívidas.
A proporção de endividados no país têm alcançado níveis máximos mês a mês, tanto na ótica do Bacen (Banco Central), com 59,2% em maio, quanto na da Peic (Pesquisa de Endividamento e Inadimplência dos Consumidores), da CNC (Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo), com 72,9% em agosto.
No caso do Bacen, o endividamento é calculado pela proporção total de dívidas contratadas pelos consumidores com o Sistema Financeiro, e, de acordo com a Peic, tem-se a percepção individual do consumidor em relação ao seu nível de endividamento e o quanto ele representa da renda familiar.
Somente com recursos livres, o estoque de crédito às famílias chegou a R$ 1,3 bilhões, aumento de 9% no ano, segundo dados do Bacen. A expansão acontece na maioria das modalidades, com destaque ao cartão de crédito, principalmente à vista, mas também no crédito consignado e no crédito pessoal.
Já a concessão média de crédito aos consumidores cresceu 19,2% no 1º semestre deste ano, em comparação ao mesmo período de 2020, descontados os efeitos sazonais. É a maior taxa de crescimento nessa base de comparação desde o início de 2013. A partir de março deste ano, os dados do Bacen mostram evolução ainda mais expressiva das concessões com recursos livre às pessoas físicas.
O crescimento consistente do crédito levou o endividamento às maiores proporções em mais de uma década, mas apresenta características diferentes entre as faixas de renda.
De acordo com a Peic, entre as famílias de menor renda, o aumento na contratação de dívidas tem se destacado justamente no cartão de crédito, com cerca de 84% de endividados na modalidade. O uso dos carnês de lojas também ganha espaço para esse grupo de renda, representando cerca de 20% das dívidas.
Isso acontece por diferentes motivos, mas principalmente porque a inflação corrente nos produtos como alimentos, transportes e energia estão consumindo cada vez mais dos orçamentos dessas famílias, fazendo com que utilizem mais o crédito.
Os dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) de julho mostraram crescimento do volume de vendas do comércio varejista global em todas as bases de comparação, tanto no conceito restrito, quanto no ampliado. O aumento mensal das vendas acima das expectativas ocorreu pelo 4º mês, mesmo nos automóveis, segmento que vem sofrendo para recompor a oferta de peças e partes.
Guardadas as diferenças no desempenho de cada um dos segmentos do varejo, com mais pessoas circulando nas ruas e o retorno gradual às atividades cotidianas, as vendas do comércio superam com folga de 3,2% os níveis de venda anteriores à crise de saúde. O setor de serviços também segue a mesma dinâmica, em que o retorno ao consumo tem se destacado com os pagamentos também na modalidade do cartão de crédito, especialmente dentre as famílias de maior renda.
E é o crédito que tem fomentado o consumo corrente, mesmo com elevação dos juros. As taxas médias nas linhas com recursos livres aos consumidores têm aumentado desde dezembro, mas ainda se encontram em patamares abaixo da média histórica, de acordo com os dados do Bacen.
Além disso, vale notar que mesmo na trajetória de aumento da Selic, os juros reais ficarão bem abaixo do que já tivemos no passado. A elevação necessária da Selic deve alcançar nível bem próximo aos juros neutros da economia, e hoje, especialmente em razão da tranquilidade quanto ao nível de reservas cambiais, os juros neutros estão em torno de 3%. Portanto, para termos juros reais próximos ao nível neutro, a Selic não precisará subir tanto, considerando ainda que a inflação deve ceder no próximo ano.
Também há fartura de recursos no sistema financeiro, e os bancos se surpreenderam durante a crise com a resiliência dos consumidores na quitação dos compromissos financeiros.
As repactuações, ou renegociações foram uma das chaves para a manutenção da inadimplência sob controle, principalmente nas dívidas com o sistema financeiro. Hoje, cerca de 25% das famílias possuem contas ou dívidas em atraso, percentual que já esteve em 26,5% no passado. O auxílio emergencial também deu fôlego aos orçamentos, viabilizando o consumo, como também o pagamento das despesas fixas.
Outro sinal que ajuda a explicar o desempenho favorável da inadimplência é o nível de poupança mais alto. Durante a pandemia, tivemos captações líquidas muito acima dos saques, em razão da poupança precaucional e circunstancial. Desde o início do ano, no entanto, o saldo tem se reduzido, com saques crescentes.
É fato que consumidor tem sentido os apertos atuais para fechar as contas do mês, com a maior disseminação do aumento dos preços correntes. Para 2022, todavia, a dinâmica inflacionária vai aliviar, em que teremos melhor controle dos preços, em níveis mais baixos. Com isso, a sensação de bem-estar vai melhorar.
Por outro lado, o consumidor também sabe que estar inadimplente dificulta enormemente questões rotineiras, não apenas a contratação ou uso do crédito no futuro. Um exemplo é o aluguel de um imóvel, comercial ou empresarial, em que estando inadimplente ou negativado, o indivíduo possivelmente não tem a ficha de locação aprovada para a transação.
Mesmo diante das adversidades que a crise tem provocado na retomada e na readequação da economia ao novo normal, os consumidores têm se mostrado cuidadosos quanto ao pagamento das contas e das dívidas, comportamento que deve predominar.
A inflação alta e o crédito farto configurariam uma tempestade perfeita, não fosse a inadimplência contida.
A economia vai crescer neste e no próximo ano, pouco, mas vai, mesmo diante das incertezas de um ano eleitoral que está chegando. A geração de empregos com carteira assinada é um sinal preditivo da atividade nos próximos meses, com expectativas mais favoráveis, passado um 1º semestre em que sentimos o momento mais trágico da pandemia. Gradualmente a geração de renda também vai aumentar pela retomada dos serviços, macro setor que concentra grande parte do trabalho informal e que responde majoritariamente pelo PIB (Produto Interno Bruto).
Com isso, o crédito deve seguir se destacando como indutor do consumo e o endividamento deve aumentar ainda mais, mesmo com juros mais altos encarecendo o capital de terceiros. Entretanto, as famílias devem seguir pagando despesas e dívidas, sem grandes riscos de aumento desenfreado da inadimplência no médio prazo.