Márcio Garcia, economista

O que significa autonomia do Banco Central? Normalmente, defende-se a autonomia do BC para que possa executar, sem interferências externas, o mandato que a sociedade, via governos eleitos, lhe conferiu para manter a inflação sob controle. Ou seja, o BC não gozaria de independência para definir seu objetivo, mas tão somente para atingir a meta que lhe foi atribuída pela sociedade quanto à inflação.

E por que o BC precisaria ser insulado da interferência de políticos para bem exercer sua atribuição de manter a inflação sob controle? Porque, muitas vezes, sobretudo em anos eleitorais, políticos no poder podem preferir que o BC baixe os juros para impulsionar a economia a curto prazo, e aumentar a chance de continuarem no poder. Se o BC cedesse a tais pressões, estaria comprometendo o controle da inflação no longo prazo, violando o mandato que a sociedade lhe conferiu.

Por isso, países mais desenvolvidos conferem aos diretores e presidente de seus bancos centrais mandatos de duração determinada, não coincidentes com os mandatos dos governantes. Há ampla evidência de que países que adotam tal arranjo tendem a lograr melhor resultado no controle da inflação.

Não se pense que a pressão política sobre o BC é algo que não ocorre em países desenvolvidos. Por exemplo, o presidente Bush (pai) costumava reclamar da política monetária restritiva conduzida pelo Fed. Segundo Bush, os altos juros ter-lhe-iam custado a reeleição em 1992, quando Bill Clinton foi eleito pela primeira vez. Sobre Alan Greenspan, Bush teria dito: “I reappointed him, he disappointed me” (eu o reconduzi, ele me desapontou).

As opiniões a respeito da autonomia do BC de economistas ilustres desafia os preconceitos. Keynes era favorável à autonomia do BC: “Quão menos direto o controle democrático e quão mais remotas as oportunidades para a interferência parlamentar com a política bancária, melhor será” (New Statesman and Nation, 17 e 24 de setembro, 1932). Já Milton Friedman, o pai do monetarismo, era contra, pois abriria espaço para a manipulação da moeda, quando o certo, segundo sua concepção, era implementar uma regra de crescimento constante da moeda.

Hoje, acredita-se que a forma mais eficiente de conduzir a política monetária é via comitê de especialistas, como o nosso Copom. Tais comitês reúnem-se periodicamente, para analisar amplo leque de dados processados por sofisticados modelos matemáticos e estatísticos. Com base nessa análise essencialmente técnica, toma-se a decisão sobre a taxa de juros, de modo a manter a inflação sob controle. É para que possam realizar tal tarefa sem pressão política que se defende a existência de mandatos para os dirigentes do BC.

No caso brasileiro há ainda uma razão adicional. O BC é também o regulador dos bancos. Os diretores e presidente de todas as demais agências reguladoras no Brasil possuem mandatos. Por que não o BC? Sem mandatos, os diretores e presidente do BC tornam-se mais suscetíveis a eventuais pressões indevidas dos bancos, não menos.

Esse debate não é novo. Nosso BC nasceu independente, em 1965, prevendo mandatos para seus dirigentes. Foi o general Costa e Silva quem matou sua independência ao demitir, em 1967, seu primeiro presidente, Dênio Nogueira. Roberto Campos relata o incidente.

“Dois meses antes da transmissão de poder, fui como ministro do Planejamento, instruído por Castello Branco para explicar ao presidente eleito Costa e Silva, os capítulos econômicos da nova Constituição de 1967. Aproveitei para sugerir-lhe que pusesse termo aos boatos de substituição do presidente do Banco Central, pois a lei lhes dava mandato fixo, precisamente para garantir estabilidade e continuidade da política monetária.

– O BC é o guardião da moeda, acrescentei. – O guardião da moeda sou eu, retrucou Costa e Silva” (A Lanterna na Popa, página 669). Ou seja, a posição da atual presidente da República, no que tange à autonomia do BC, tem sólida ascendência no autoritarismo brasileiro.

O que ensina a pesquisa recente sobre a autonomia do BC? Em extensa pesquisa, Daron Acemoglu e coautores (“When Does Policy Reform Work? The Case of Central Bank Independence”, Brookings Papers on Economic Activity, 2008 (1), pp. 351-418) mostraram que a adoção da autonomia do BC mostrou-se mais eficaz em países que impõem grau intermediário de restrições a seus mandatários, o que é o caso do Brasil. A autonomia do BC não melhora o controle da inflação em países com instituições muito fracas. Por exemplo, o Zimbabue adotou várias reformas para aumentar a autonomia do BC em 1995, mas isso não impediu que vivesse uma hiperinflação.

Já em países democráticos com instituições bem consolidadas e abrangente sistema de freios e contrapesos, a autonomia do BC não parece melhorar o já consolidado controle da inflação. Não obstante, tais países adotam a autonomia de seus BCs. Dos 27 países que adotam o regime de metas para inflação, o Brasil é o único que não prevê mandatos fixos para os dirigentes do BC.

Em resumo, a autonomia do BC não é uma panaceia que nos garanta para sempre a inflação sob controle. Mas, sem dúvida, ajudaria muito a recuperar a credibilidade do BC como guardião da moeda, tão abalada pela alta inflação dos últimos anos. Facilitaria o trabalho do BC, que não precisaria elevar tanto os juros para fazer a inflação retornar à meta de 4,5%.

Publicado no Valor Econômico em 26.09.14

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