Por João Batista Oliveira
Congresso em Foco

Novamente na pauta a discussão das cotas para o ensino superior, em breve vence o prazo da legislação atual. O tema merece reflexão.

Para um parlamentar, nada melhor do que refletir sobre o impacto das cotas para mulheres nas chapas dos partidos. Deu certo? Está melhorando? O que aconteceu?  Basta uma lei? Existem entraves históricos e institucionais, jogos de poder e interesse que esterilizam as melhores das intenções?  A lei seria diferente se a maioria do Congresso fosse composta por mulheres?  São perguntas que podem e devem ser respondidas ao se retomar o debate sobre quotas para universidade.  Essa reflexão daria um tom maior de realismo ao debate.

Outra consideração preliminar.  É consenso entre os especialistas que o ensino superior dos Estados Unidos se destaca do que existe no resto do mundo – não apenas por sua excelência, mas também por sua diversidade.  Nos dias que correm uma importante mudança vem ocorrendo no processo de admissão adotado pelas concorridas Universidades de Elite, especialmente no grupo de universidades conhecida como Ivy League.  Em decorrência dessas mudanças – cujo objetivo principal é “diversificar” o perfil do alunado, os melhores alunos do ensino médio de cor branca e amarela que não se identificam com outras marcas identitárias estão sendo orientados a não mais concorrer às Ivy League e passar a concorrer para as chamadas Universidades do segundo nível – todas elas excelentes, mas sem o charme que caracteriza as escolas que compõem a Ivy League.  Deixo ao leitor interessado o trabalho de se aprofundar.  Para os demais, pulo direto à conclusão pertinente: uma vez estabelecida a diferenciação para um grupo, fatalmente surgirão outros grupos para pleitear a sua cota.  Aqui não estamos fazendo juízo de valor, apenas relatando um fato.  O que está em jogo: a meritocracia.

E assim chegamos às cotas para as universidades – inicialmente focadas em negros e posteriormente ampliadas para outras minorias, especialmente os indígenas e também para alunos de escola pública e/ou de nível socioeconômico mais baixo. Ou seja, nosso sistema de cotas abriga um número razoável de pessoas com diferentes características.

O que ocorreu? O acesso de alunos com esse perfil foi ampliado – nas universidades públicas saíram de um mínimo quase imperceptível para ocupar metade ou mais das atuais vagas. Diferentemente do que ocorreu nas instituições de elite, nos Estados Unidos, no Brasil esses alunos raramente tomaram o lugar dos brancos, por uma simples razão: no mesmo período as vagas nas instituições federais aumentaram cerca de 60% – aumento mais do que suficiente para absorver a nova demanda. Se a maioria dos novos alunos conclui os cursos, frequenta cursos noturnos, frequenta cursos pouco ou nada competitivos é uma questão menos discutida. Ademais, outros mecanismos de financiamento também permitiram o acesso desse grupo a instituições privadas de ensino superior. O grande objetivo – diversificar o acesso ao ensino superior – está sendo alcançado – já são 38% de pretos e pardos na universidade (e são mais de 50% na população). E isso, em si, tem méritos. E há inúmeros estudos acadêmicos para mostrar os méritos e gargalos dessas políticas.

Na próxima revisão da lei de cotas certamente surgirão outros grupos que se consideram minoritários ou em condição desvantajosa, interessados em assegurar espaço para facilitar o seu acesso às universidades públicas. E certamente surgirão ideias para modificar o panorama atual.

Infelizmente o ano eleitoral e o pouco tempo que resta não permitirá o debate aprofundado que o tema merece. Mas existem estudos interessantes – citados ao final deste artigo – que podem alimentar o debate.

Uma pergunta relevante, no entanto, é saber se o sistema de quotas influi no rigor da seleção, na qualidade do ensino, no desempenho dos concluintes e no perfil acadêmico da instituição. Também interessa saber o impacto do sistema de cotas na trajetória profissional dos egressos desse grupo. Existem estudos que dão importantes indicações sobre isso e que devem ser analisados no debate, alguns dos quais citados ao final deste artigo.

Numa eventual revisão da legislação, além desse debate sobre impacto e evidências, seria oportuno discutir um novo formato de legislação, que fosse ao mesmo tempo mais genérico, no sentido de não regulamentar o detalhe, mas que trouxesse incentivos para estimular critérios diferenciados, associados com testes-piloto que servissem para validar a eficácia de diferentes alternativas. Ou seja: um mínimo de regras gerais indicando a direção, mas espaço para as universidades implementarem as ideias. Por exemplo, cotas raciais num estado como Santa Catarina não deveriam ter o mesmo percentual de estados com maior população de negros e pardos. Por outro lado, nos estados do Norte e Nordeste, cotas sociais possivelmente fariam mais sentido. Associado a isso deveria haver previsão de recursos e incentivos para pesquisas e avaliações de impacto, associadas ao amplo acesso aos dados por parte dos pesquisadores.

Ao fim e ao cabo estamos falando de medidas para atenuar os efeitos de desigualdades que são seculares para grupos inteiros – no caso de negros, por exemplo – mas também para indivíduos que nascem pobres. Essas desigualdades começam no berço e se acentuam nos primeiros anos de vida. A entrada no ensino superior é apenas a ponta do iceberg – os que não chegam lá constituem a grande maioria – e o sistema de cotas pouco contribui para isso. Para mitigar essas diferenças de todo tipo – mas essencialmente associadas a pobreza e cor da pele – são necessárias políticas sociais mais abrangentes, iniciando na primeira infância e apoiando os indivíduos ao longo de sua trajetória escolar, o que seria possível com um sistema público de qualidade na educação básica. Isso vale para os alunos pobres menos talentosos. Mas vale igual para os alunos pobres de alto talento que não encontram condições e estímulos para desenvolvê-los e se perdem no meio do caminho.

 

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