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Por Paulo de Martino Jannuzzi

Termo deve ser considerado como solução de problemas coletivos ou atendimento de demandas públicas?

Política Pública é um termo entendido com muitas acepções diferentes. Há certo senso comum que a identifica como ações governamentais “voltadas para os pobres, para remediar as condições de vida daqueles que não conseguem se manter por si mesmos”. Concepção mais elaborada mas tão ou mais reducionista é aquela apresentada nos manuais da Economia neoclássica: políticas públicas constituem-se em um “mal necessário” para corrigir as falhas do “venerado” mercado. Nessa perspectiva, a ação governamental deveria ser a mais comedida possível para solucionar os problemas intrincados que o mercado não consegue resolver por si mesmo, como na produção de serviços e bens não rivais e não excludentes – iluminação pública, por exemplo; nas situações de monopólio natural – defesa nacional, para citar o caso mais óbvio -, ou de externalidades negativas das atividades econômicas – mitigação dos efeitos decorrentes das mudanças climáticas, entre outros. Vertentes menos conservadoras de economistas acrescentariam a esse rol a necessidade de políticas de “igualdade de oportunidades” para combater a desigualdade mais extrema. Afinal, ao viabilizar que “os mais esforçados” – ricos ou pobres- sejam “premiados” no acesso à universidade ou a outros serviços públicos, o sistema econômico estaria ganhando maior eficiência.

Em outros círculos, da ciência política e da administração pública, o espectro conceitual de políticas públicas abarca definições abstratas como “tudo o que o governo faz ou deixa de fazer”, outras mais singelas como “diretrizes e ações voltadas à resolução de um problema coletivo”, e ainda concepções mais instrumentais como “fluxo de decisões públicas, orientado a manter o equilíbrio social ou a introduzir desequilíbrios destinados a modificar essa realidade”. Documentos governamentais repetem tais variantes: no manual de formulação de políticas públicas no governo federal, elas são entendidas como medidas “para atuar sobre a fonte ou a causa de um determinado problema ou conjunto de problemas buscando solucioná-los ou minimizá-los”, em documento do Tribunal de Contas da União, as políticas públicas correspondem ao “conjunto de intervenções e diretrizes emanadas de atores governamentais que visam tratar, ou não, problemas públicos e que requerem, utilizam ou afetam recursos públicos”.

Nos verbetes de políticas públicas disponíveis na literatura acadêmica e político-normativa não há menção que as relacionem prioritariamente ao atendimento de demandas coletivas ou necessidade humanas; o termo é referenciado ora como a desabonadora definição de “mal necessário para correção de falhas do mercado”, ora com a anódina acepção de “fluxo de decisões governamentais para equalizar desequilíbrios indesejados”, ora com o esvaziado conceito de “solução para problemas reconhecidos como coletivos”.

Embora tais definições possam ser úteis na pesquisa acadêmica elas não parecem suficientes para orientar estudos empíricos voltados a subsidiar “o governo em ação”, como análises, prescrições e avaliações de programas públicos. Esses estudos precisariam se respaldar, de um lado, em conceituações mais instrumentais do seu objeto e, de outro, em definições matizadas pela natureza política-valorativa que as conformaram em seu desenho e implementação.

Políticas públicas lidam com complexidade, pela dimensão dos públicos atendidos, pela quantidade de pessoal técnico envolvido, pela arquitetura do arranjo operacional de agentes e instituições implicados na produção dos serviços e bens públicos

Nesse sentido, uma definição mais apropriada parece ser o entendimento de políticas públicas como empreendimentos governamentais para atendimento de demandas societárias normativamente reconhecidas – como o atendimento à saúde, serviços educacionais, por exemplo, para a promoção de objetivos coletivamente almejados – como redução da desigualdade, promoção da sustentabilidade ambiental etc – e para a solução ou mitigação de uma problemática reconhecida como indesejável – como a fome, miséria, trabalho infantil, poluição ambiental entre tantas. Trata-se de uma acepção que explicita a natureza valorativa e a intencionalidade política que as fundamentam, sem perder a racionalidade instrumental que as caracterizam nas intervenções concretas na realidade social, econômica e ambiental. Sua acepção como empreendimento a diferencia da concepção de projeto circunscrito com começo-meio-fim, que ainda está presente no imaginário de parte da sociedade e da academia. Políticas públicas lidam com complexidade, pela dimensão dos públicos atendidos, pela quantidade de pessoal técnico envolvido, pela arquitetura do arranjo operacional de agentes e instituições implicados na produção dos serviços e bens públicos.

Seria possível argumentar, como propõem os estudos de Agenda e Formulação, que reconhecer um problema coletivo como questão pública o transforma em potencial demanda a ser atendida por uma política pública. Mas o potencial para a resolução de um problema coletivo não se equipara à potência legal de uma demanda constitucional contratada. Afinal, à luz do artigo 6º da Constituição Federal de 1988, alimentação, saúde e educação são demandas contratadas e garantidas para todos os brasileiros ou são problemas a resolver? Não são problemas; já estão colocadas como questões públicas, ou melhor, são demandas constitucionais a serem atendidas. Tornam-se problemas quando não atendidas ou mal equacionadas, gerando a fome, mortalidade infantil ou analfabetismo. Desenhar ações governamentais para mitigar esses problemas não é o mesmo que conceber programas para atender a demanda por alimentação suficiente e saudável, saúde universal e integral e educação cidadã e de qualidade. Sem dúvida, tomar política pública como solução de problemas coletivos apequena seu conceito frente ao arcabouço institucional brasileiro.

Para técnicos governamentais formular e avaliar políticas compromissadas com demandas públicas envolve esforços mais abrangentes que o desenho de ações para equacionamento de problemas coletivos ou imperfeições do mercado. Metodologias de desenhos de projetos – como árvore de problemas e modelo lógico, por exemplo – podem atender necessidades de formulação de programas voltados à solução de problemas, mas são ferramentas limitadas para formulação de programas que pretendem responder a demandas públicas mais abrangentes. Instrumentos de gestão ou metodologias de avaliação de programas-dedicados-a-problemas são também mais modestos do que aqueles necessários para implementação ou análise de programas-voltados-a-demandas. No primeiro caso, bastam abordagens instrumentais focadas em técnicas e projetos; na segunda situação, estratégias multi-métodos e referenciadas a critérios valorativos são indispensáveis .

No século 21, no Brasil, na América Latina, em Portugal ou em qualquer sociedade complexa, os cuidados com as crianças e com os idosos, as demandas e os riscos que a vida e o trabalho impõem aos jovens e adultos, as necessidades básicas de sobrevivência de qualquer um – e não só dos mais pobres como mostrou a pandemia – dificilmente podem ser atendidas ou sanadas no contexto familiar e nos círculos de solidariedade mais próximos. O Estado de Bem-Estar – e as políticas públicas nele inseridas – foi uma conquista civilizatória nessa trajetória histórica de afastamento do Estado hobbesiano da natureza de 10 mil anos atrás, que os traços arqueológicos de Nataruk não nos deixam esquecer.

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