Editorial de O Globo
Se a política brasileira não estivesse em um ciclo do qual uma das marcas é o mais escancarado fisiologismo, seria possível esperar que a presidente Dilma vetasse projeto de lei aprovado terça-feira no Senado para facilitar a criação de municípios.
Até porque foi o que ela fez, acertadamente, no fim de 2013, com projeto de lei complementar semelhante. Depois de passar pelo Senado, a lei foi a Dilma e dela não passou, sob o argumento, fundamentado, de que a facilitação do surgimento de prefeituras ia contra a necessidade de controle/gastos públicos.
Mas os tempos são outros. Os defensores da legislação agora aprovada garantem que ela é menos magnânima que a anterior. Em vez de plainar o terreno para a fundação de 400 municípios, surgiriam, agora, cerca de 200.
Ora, as razões que levaram ao veto do fim de 2013 continuam válidas. Mas, desta vez, deverá ser diferente, pois a candidata Dilma Rousseff por certo não desejará contrariar os esquemas políticos regionais que procuram criar municípios. Mesmo que seu objetivo seja apenas buscar apoio no eleitorado com a manipulação clientelista/verbas e cargos que surgem com as prefeituras.
Já se viveu esta experiência e sabe-se que o seu desfecho é mais pressão sobre o Erário. A partir da promulgação da atual Constituição, em 1988, marcada pela liberalização política, montou-se uma produtiva indústria de fundação de municípios, lastreada na falsa ideia de que a multiplicação de entes federativos melhoraria a qualidade da administração pública.
Talvez fosse assim, se os novos entes pudessem sobreviver com recursos da própria arrecadação. E não foi o que aconteceu. Da entrada em vigor da Carta a 1996, portanto em oito anos, apareceram 1.480 prefeituras. A farra foi tão intensa que, em 96, no primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), aprovou-se lei complementar para cortar o ímpeto dessa indústria.
A vida real comprovou que boa parte dos novos municípios não tinha, nem tem, condições de sobreviver sem os repasses do fundo de participações. Hoje, do total de 5.700 municípios, a grande maioria é dependente desse dinheiro de estados e da União. Só existem para satisfazer caciques políticos, sem qualquer justificativa geoeconômica. A multiplicação de entes federativos também não interessa às prefeituras e estados já existentes, porque as fatias do bolo a ser repartido ficam menores.
Também na terça, o Senado aprovou emenda constitucional que aumenta em um ponto percentual os recursos transferidos ao fundo de participações dos municípios provenientes do imposto de renda e do imposto sobre produtos industrializados (IPI).
A conta, portanto, das demandas de municípios e estados vai para a União. E esta tem transferido este custo para o cada vez mais sobrecarregado contribuinte. Este será o mesmo destino das despesas que surgirão com as novas prefeituras.
Publicado em 07/08/14