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Dorrit Harazim, jornalista

Na segunda-feira passada um pianista argentino e professor de música em Olavarría adormeceu pensando se chamar Ignacio Hurban. Há 36 anos era assim. No dia seguinte, porém, ao obter o resultado do ansiado exame de DNA, Ignacio descobriu ser Guido Montoya Carlotto. Ou melhor, voltou a ser o que era ao nascer numa maternidade clandestina.

Passara apenas as primeiras cinco horas de vida ao lado da mãe, Laura, que o parira amarrada a uma cama do Hospital Militar de Buenos Aires. Depois, dela foi arrancado para sempre.

Tornou-se um dos quase 500 bebês de esquerdistas presos, dos quais a ditadura militar se apossou e redistribuiu entre torturadores, policiais e dignitários do regime para adoção clandestina.

Graças ao trabalho sisifiano das mães e avós das vítimas dos oito anos de ditadura argentina (1976-1983), 113 desses bebês roubados foram sendo paulatinamente localizados e identificados. Guido é o número 114.

Na quarta-feira ele pode ser acarinhado pela avó Estela de Carlotto, a incansável dirigente da entidade que batalha pelos desaparecidos. Esse primeiro (re) encontro durou seis horas e meia. Felizmente transcorreu a portas fechadas, escapando de ser transformado em circo midiático.

Estela está exultante, aos 83 anos. O ditador argentino Jorge Videla morreu no cárcere aos 87 anos, em 2013, sem arrependimentos. Admitira ter sido responsável pelas “mortes e desaparecimentos de entre sete mil e oito mil pessoas”.

Henry Kissinger, nome maior da diplomacia americana nos governos Richard Nixon (1969-1974) e Gerald Ford (1974-1977), já passou dos 90. O tom gutural de sua voz e o carregado sotaque alemão dão um sabor especial às 3.700 horas de gravações secretas feitas por Nixon dois anos antes de ser defenestrado.

Paranoico e inseguro, vaidoso e conspirador, Nixon decidiu gravar todos os telefonemas e conversas que mantinha. Entre os motivos apontados por historiadores para explicar o que o levou a isso está a intenção de rebater a versão que Kissinger, seu mais valioso parceiro estratégico, certamente faria de seus anos no poder. Quis estar preparado para o inevitável duelo de memórias que ambos escreveriam.

É graças a esse tesouro histórico, descoberto durante a investigação do caso Watergate e tornado público, que a voz cavernosa de Kissinger pode chegar aos ouvidos da argentina Estela, avó de Guido e mãe da jovem Laura, assassinada pela ditadura de Videla.

Um documento específico aproxima o cauteloso secretário de Estado da brutal erradicação da esquerda argentina durante a chamada Guerra Suja. Trata-se do memorando, posterior às gravações, de seu longo encontro com o chanceler argentino Cesar Augusto Guzzetti, na Buenos Aires de junho de 1976.

Segundo o memorando, Guzzetti temia que Kissinger lhe cobrasse uma melhora na questão dos direitos humanos. Como o americano não tocasse no assunto, foi Guzzetti quem encaminhou a questão. “O principal problema da Argentina são os terroristas”, arriscou o chanceler.

“Se há coisas que devem ser feitas”, respondeu Kissinger, “vocês devem fazê-las rapidamente e retomar rápido os procedimentos normais”.

Dois meses depois, Kissinger confirmava a Robert Hill, embaixador dos Estados Unidos em Buenos Aires, que a Argentina deveria “acabar com o terrorismo antes do fim do ano”. Tudo deveria estar concluído antes da entrada em vigor de uma lei aprovada pelo Congresso vetando qualquer tipo de ajuda dos Estados Unidos a países que ignorassem os direitos humanos. Jimmy Carter tinha chegado à Casa Branca.

Vale pinçar dois exemplos das extensas gravações secretas para ilustrar a singular relação do presidente com o seu poderoso conselheiro.

Num dia de abril de 1972, Nixon foi ter com Kissinger no Executive Office Building, anexo à Casa Branca — eternamente desconfiado, Tricky Dick evitava conversas sérias no Salão Oval por não considerá-lo “seguro”. Estava tenso, temia o fim da carreira caso os americanos fossem derrotados no interminável atoleiro do Vietnã e caso uma crucial reunião de cúpula com o líder soviético Leonid Brejnev fracassasse.

Foi quando Nixon aventou a hipótese de recorrer à bomba atômica no Sudeste Asiático. A ideia faria parte de uma curiosa estratégia: os norte-vietnamitas passariam a acreditar estarem lidando com um louco e aceitariam sentar à mesa de negociações.

“Prefiro usar a bomba atômica”, anunciou Nixon. Pausa. “Isso me parece excessivo”, ponderou Kissinger. “A bomba atômica o incomoda? Quero apenas que você pense grande”, insistiu o presidente.

Kissinger não respondeu.

No mês seguinte, voltaram a falar sobre o Vietnã. “Há um único ponto em torno do qual divergimos”, comentou o presidente. “É em relação aos bombardeios. Você fica preocupado com os civis e eu não dou a mínima. Não ligo.” A ponderação de Kissinger: “Eu me preocupo com os civis porque não quero que o mundo se mobilize contra o senhor, o considere um carniceiro. Podemos fazer a coisa sem matar civis.”

Em outra ocasião os dois parceiros debatem a necessidade de abafar críticas à opressão do governo soviético contra os judeus russos. Era vital que nada prejudicasse as negociações de desarmamento bilateral em curso.

“O Departamento de Estado acaba de divulgar uma nota duríssima contra o tratamento de judeus na URSS”, anunciou Kissinger. “E por que você não impediu isso, caramba?”, quis saber Nixon. Sem responder, Kissinger propôs redigir um memorando instruindo o Departamento de Estado a submeter previamente qualquer declaração referente à URSS, por mais trivial que fosse.

Nixon concordou.

“Como você sabe”, comentou Kissinger, “eu sou judeu. Mas quem somos nós para reclamar do tratamento que a URSS dá aos judeus? Não é da nossa conta.”

A renúncia de Richard Nixon para escapar do impeachment, traumática para ele e para o país, ocorreu exatamente 40 anos atrás, em 9 de agosto de 1974. Seis presidentes depois, Barack Obama embaralha os princípios de Jimmy Carter com atos da era Nixon. A incursão atual no Iraque tem tudo para dar errado.

Publicado no O Globo em 09/08/14

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