Mercado se une em busca da modernização das normas estaduais do gás natural

Por Daniela Santos, mestre em direito constitucional pela PUC-RJ, sócia da SG Advogados e consultora da Associação Brasileira dos Produtores Independentes de Petróleo e Gás (ABPIP), e Natália Seyko, engenheira de energia pela UnB e atua como analista sênior de energia da ABRACE.

Sempre lembrado no contexto da transição energética por suas vantagens como fonte de energia renovável, o gás natural é considerado elemento fundamental na composição do mix de energias ao servir como back up em caso de aumento significativo de demanda energética ou baixas nas fontes renováveis. Mas não é só: sua oferta no Brasil vai duplicar na próxima década e a intenção é garantir sua utilização pelo mercado nacional.

Contudo, a despeito do evidente potencial de se tornar protagonista nos próximos anos, garantindo segurança energética ao País, o fator competitividade ainda precisa ser alcançado pelo setor. Nesse sentido, muitos esforços tributários, legais e regulatórios foram despendidos nos últimos anos, sobretudo para viabilizar a abertura do mercado. Especificamente sobre o ambiente livre, enxerga-se a oportunidade de transferir o poder de negociação do preço do gás ao consumidor, assim como promover a diversificação de fornecedores na cadeia e induzir a criação de novos produtos de contratação, entre outros.

Entretanto, passados quase dois anos da promulgação da Nova Lei do Gás, o resultado prático da abertura do mercado ainda não é o esperado, exigindo atenção e esforços redobrados. Dos consumidores industriais, por exemplo, existem apenas dois usuários atualmente, um deles gerado no próprio mercado livre. Ao analisar quem efetivou o movimento da migração do mercado cativo para o livre é constatado que somente um consumidor, em Minas Gerais, foi capaz de consumar o movimento – ironicamente com contratação de fornecimento pelo ainda supridor dominante do mercado.

Um dos principais pontos chave para o destravamento da abertura do mercado livre está no âmbito da atuação estadual, uma vez que o art. 25, § 2º da Constituição Federal determina que cabe aos estados, direta ou indiretamente, a exploração dos serviços locais de gás canalizado. Ou seja, cada Estado tem o seu próprio arcabouço normativo sobre o tema.

Diversos estados, enxergando tal potencial, passaram a promover regulações e editar leis mais favoráveis à abertura do mercado. Ao analisar os principais avanços normativos, podemos citar uma considerável evolução de alguns estados sobre os requisitos básicos para classificação como consumidor livre, redução do tempo de aviso prévio para a migração do ambiente cativo para o livre e a definição da figura do consumidor parcialmente livre – como aquele que possui contratação simultânea no mercado livre e mercado regulado.

Entretanto, além das novidades não terem sido implementadas por todos os estados, ainda persistem aspectos críticos para o aprimoramento de muitas legislações estaduais, por inviabilizar ou criar obstáculos injustificáveis (e custos) para a migração dos consumidores para o mercado livre, como a falta de isonomia de tratamento dos contratos de uso do sistema de distribuição (CUSD) entre os consumidores cativos e livres.

Em estados como Bahia, Espírito Santo e São Paulo, por exemplo, há em suas regulações determinação de cobrança de penalidades adicionais e/ou penalidades existentes no cativo, porém mais rígidas ao consumidor livre. Por conta disso, há uma imposição de aumento de custo tarifário de milhões de reais aos consumidores industriais, adicionada à incumbência pela assunção de riscos contratuais de suprimento. A questão não é impedir a transferência dos riscos contratuais aos consumidores, mas que as penalidades devem ser reguladas para viabilizar a contratação de gás e transporte de curto prazo e não representar mecanismo de obtenção de receitas adicionais pelas concessionárias de distribuição sobre os consumidores.

Uma solução adequada seria estabelecer modelo de CUSD com condições mínimas sobre a tratativa de penalidades, definindo limites para evitar cobranças abusivas ao consumidor e promover flexibilidade para dar margem de negociação entre as partes, como proporciona a regulação de Minas Gerais. Nesse caso, a contratação é viabilizada sem a obtenção de receita adicional pelas concessionárias de distribuição em prejuízo dos consumidores e, por outro lado, mantém o equilíbrio econômico-financeiro da distribuidora. Em complemento, vislumbra-se a instituição de modelos de CUSDs flexíveis, que permitam contratações de curto prazo, sem comprometer o que foi estabelecido nas condições de CUSDs “firmes”.

Outro aspecto preocupante concerne à regulação da atividade de comercialização pelos estados. Conforme estabelecido no art. 25, § 2º da Constituição Federal, e chancelado pela Nova Lei do Gás, a atividade de comercialização de gás natural não é de competência estadual, mas da União. Entretanto, diversos estados passaram a inserir em suas normas dispositivos sobre o tema, o que extrapola sua competência. Algumas definem muitas exigências ao comercializador, gerando barreiras para fomentar o consumo de gás no mercado livre. Ademais, estados como Bahia, Ceará, Paraíba, Pernambuco e São Paulo, estabelecem cobrança de taxa de fiscalização sobre comercializadores para atuarem no estado, o que além de contrariar as previsões constitucional e infralegais, retira a competitividade da atividade no estado.

Ainda sobre conflitos de atuações normativas, cabe mencionar a falta de previsão sobre a desverticalização dos elos da cadeia ou até mesmo a afirmação explícita da verticalização dentro dos estados. A verticalização entre as atividades de distribuição e comercialização de gás no mercado livre é um dos principais entraves para a concorrência. Minas Gerais, Pernambuco, Sergipe e São Paulo estabeleceram a separação completa entre as atividades e podem servir de exemplo para os demais entes da Federação.

Também há o risco de verticalização entre as atividades de distribuição e de suprimento, a partir das previsões regulatórias estaduais que possibilitam a classificação de dutos com características técnicas de transporte como de distribuição. Além de representar outra transgressão constitucional, a medida vai contra o movimento atual de desverticalização do setor.

Muitas legislações também não preveem a Tarifa de Uso Específico do Sistema de Distribuição (TUSD-E) e isso precisa ser corrigido, uma vez que se trata do reconhecimento de uma tarifa adequada e proporcional ao serviço realmente prestado (O&M), cobrada pela concessionária distribuidora ao auto importador, autoprodutor ou consumidor livre que utilizem o sistema de distribuição isolado.

De modo geral, é salutar reforçar a necessidade de os estados garantirem efetivamente a participação social em todas as etapas de elaboração e ajuste das normas que afetam interesses de terceiros. Isso inclui discussões prévias envolvendo todos os agentes interessados, elaboração de AIR/ARR quando cabível (com relatórios disponibilizados previamente à contribuições públicas), acesso fácil aos processos e documentos em sites públicos, tramitação de projeto de leis com audiência pública e amplo debate, além de prazos adequados para o envio de considerações em consultas públicas, entre outras medidas fundamentais para garantir legitimidade e adequação aos processos que envolvem o gás natural nos estados. Sem tais garantias, os avanços esperados são menores ou simplesmente não se realizam, em prejuízo do setor, especialmente dos consumidores/usuários (e benefício de poucos).

Diante desses e outros riscos atrelados às normas estaduais, que impedem a efetiva abertura do mercado, a proposta de modernização normativa dos estados se faz imprescindível, o que também pode ocorrer via a “harmonização legislativa” facultada no art. 45 da Lei e no art. 27 do Decreto do Gás. Esta é uma grande notícia para todos os agentes envolvidos no mercado, especialmente para o consumidor. Evidentemente, deve-se respeitar a autonomia dos estados em regular a atividade de distribuição, considerando as características de seus mercados, mas isso nada tem a ver com a urgência em se promover diretrizes básicas que coloquem questões fundamentais relacionadas à comercialização do gás nos trilhos, rumo à tão desejada competitividade.

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