Lei Federal nº 13.979 permite uso de vacina sem aprovação da Anvisa

Por: Carlos Eduardo Rios do Amaral

Conjur.jus.br

A Lei Federal nº 13.979, de 6 de fevereiro deste ano, regulamenta no território nacional as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus. Como reza seu próprio artigo 1º, §1º, “as medidas estabelecidas nesta lei objetivam a proteção da coletividade”.

Em verdade, a Lei Federal nº 13.979/2020 é mais um dos muitos instrumentos normativos a assegurar a plena vigência e efetividade prática do comando constitucional insculpido no artigo 196 da Constituição Federal de 1988, que proclama que a saúde é direito de todos e dever do Estado. Assim, para muito além da presunção de regulamentar solitariamente a questão do coronavírus, a Lei Federal nº 13.979/2020 soma esforços na promoção, proteção e recuperação da saúde de todos os brasileiros.

O artigo 3º, caput, da Lei Federal nº 13.979/2020, ao fazer uso da expressão “entre outras (medidas)” deixa expressamente claro que as medidas que as autoridades públicas poderão adotar, no âmbito de suas competências, para enfrentamento do coronavírus não esbarram num rol taxativo. E nem poderia ser diferente, sob pena de padecer do vício de manifesta inconstitucionalidade material ao limitar através de lei ordinária ações e serviços públicos de saúde para tratamento da doença em franca cisão entre Estado e ciência. O Parlamento sabe muito, pode muito, mas o campo de desenvolvimento da ciência é infinito e sempre deterá posição de vanguarda.

O artigo 3º, inciso III, “e”, da Lei Federal nº 13.979/2020, por si só, já seria suficiente para assegurar uso da vacina contra o coronavírus sem aprovação da Anvisa, ao prescrever que, para enfrentamento da pandemia, o agente público poderá adotar “tratamentos médicos específicos”. Tratamentos médicos específicos, inclusive tratamento médico consistente em vacinação! A lei não diz “tratamentos médicos específicos, com exceção da prescrição médica de vacinação”. Ora, enxurradas de liminares são concedidas ao dia pelo Poder Judiciário com base em detalhados laudos médicos para promoção da vida e saúde de pacientes, inclusive determinando vacinação de pessoas doentes. É mesmo necessário dizer que tratamento médico específico visando à promoção, proteção e recuperação da saúde é ditado pela medicina em geral e seus profissionais? O artigo 196 da Constituição não permitiria uma interpretação restritiva deste inciso.

Por essa razão, o §7º-B do artigo 3º da Lei Federal nº 13.979/2020 reza que o médico que prescrever ou ministrar medicamento cuja importação ou distribuição tenha sido autorizada na forma do inciso VIII do caput deste artigo deverá informar ao paciente ou ao seu representante legal “que o produto ainda não tem registro na Anvisa e foi liberado por ter sido registrado por autoridade sanitária estrangeira”.

Aliás, o próprio Supremo Tribunal Federal, muito antes da pandemia do coronavírus, já havia decidido em sede de repercussão geral (Tema 500) que é possível a concessão judicial de medicamento sem registro sanitário, em caso de mora irrazoável da Anvisa em apreciar o pedido (prazo superior ao previsto na Lei nº 13.411/2016), quando preenchidos três requisitos: 1) a existência de pedido de registro do medicamento no Brasil (salvo no caso de medicamentos órfãos para doenças raras e ultrarraras); 2) a existência de registro do medicamento em renomadas agências de regulação no exterior; e 3) a inexistência de substituto terapêutico com registro no Brasil.

Mas o artigo 3º, inciso VIII, da Lei Federal nº 13.979/2020, com a sua redação alterada pela Lei Federal nº 14.006, de 28 de maio deste ano, preciso e cirúrgico, naufraga qualquer óbice à vacinação contra o coronavírus sem a aprovação da Anvisa. Vejamos:

“Artigo 3º — (…)
VIII. autorização excepcional e temporária para a importação e distribuição de quaisquer materiais, medicamentos, equipamentos e insumos da área de saúde sujeitos à vigilância sanitária sem registro na Anvisa considerados essenciais para auxiliar no combate à pandemia do coronavírus, desde que: (redação dada pela Lei nº 14.006, de 2020)
a) registrados por pelo menos uma das seguintes autoridades sanitárias estrangeiras e autorizados à distribuição comercial em seus respectivos países: (redação dada pela Lei nº 14.006, de 2020)
1)
Food and Drug Administration (FDA); (incluído pela Lei nº 14.006, de 2020)
2)
European Medicines Agency (EMA); (incluído pela Lei nº 14.006, de 2020)
3)
Pharmaceuticals and Medical Devices Agency (PMDA); (incluído pela Lei nº 14.006, de 2020)
4) National Medical Products Administration (NMPA); (incluído pela Lei nº 14.006, de 2020)”.

Aqui, nenhum esforço hermenêutico é capaz de afastar o uso de vacina sem aprovação da Anvisa, a não ser a sua própria ineficácia e/ou falta de segurança cientificamente demonstradas. Mas aí o impedimento não residirá na ausência do registro sanitário, mas no mérito científico de sua ineficiência e insegurança, mesmo a par da chancela de autoridades sanitárias estrangeiras (questão de soberania nacional).

Uma vez demonstrada a eficácia e segurança da vacina, atendido o pleito lega do artigo 3º, VIII, da Lei Federal nº 13.979/2020, com a sua redação alterada pela Lei Federal nº 14.006, de 28 de maio, não existirá campo discricionário ao agente público para decidir sobre vacinar ou não vacinar. Deverá vacinar a população, independentemente do registro sanitário na Anvisa.

O §7º-A do artigo 3º da Lei Federal nº 13.979/2020 prevê que a autorização deverá ser concedida pela Anvisa em até 72 horas após a submissão do pedido à agência, dispensada a autorização de qualquer outro órgão da Administração Pública direta ou indireta para os produtos que especifica o inciso VIII, sendo concedida automaticamente caso esgotado o prazo sem manifestação.

Por fim, cabe salientar que há parecer da Procuradoria-Geral da República, junto ao Supremo Tribunal Federal, na ADI 6.586, opinando pela competência da União para definir sobre a obrigatoriedade ou não da vacinação, podendo os Estados determinar a vacinação obrigatória levando em conta a realidade local ou caso o Ministério da Saúde não atue para garantir a imunização da população de acordo com critérios técnicos e científicos adequados.

Extrai-se do sítio eletrônico da Procuradoria-Geral da República (25/11/2020):

“Em caso de manifesta inação do órgão federal em face de cenário de calamidade pública ocasionado por epidemia viral sem precedentes, ‘poderão os Estados-membros estabelecer a obrigatoriedade da imunização como forma de melhor realizar o direito fundamental à saúde’. Nesses casos, o PGR sustenta que, para tornar obrigatória a vacinação em seus territórios, os estados devem demonstrar que os fundamentos adotados pelo Ministério da Saúde não atendem à realidade do Estado”.

O Tema Repetitivo nº 500, o artigo 196 da Constituição e o artigo 3º, VIII, da Lei Federal nº 13.979/2020 dão um indicativo de que a Corte Constitucional deverá garantir o uso de vacina independentemente do registro na Anvisa. Quanto à questão da competência e da compulsoriedade da vacinação contra o coronavírus resta mesmo aguardar o julgamento à luz do artigo 23, inciso II, e artigo 196 da Constituição.

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