A discussão de uma possível lei brasileira de regulação dos mercados digitais

Por Humberto Cunha dos Santos, doutorando em Direito Comercial pela Universidade de São Paulo (USP). Professor de Direito do Uniceub. Procurador Federal junto ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade). Atuou como assessor e procurador junto à Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel)

Em outra ocasião, pode-se realçar como a aprovação do Digital Markets Act (DMA) pelo Parlamento Europeu abre uma janela preciosa para reflexão e possíveis aprimoramentos ao Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (SBDC). 

Naquele breve texto, chamava-se atenção para o fato de o DMA possibilitar essas discussões, não necessariamente adstritas ao funcionamento dos mercados digitais, em razão da maneira distinta que o regramento concebe a defesa da concorrência, com objetivos, técnicas e ferramentas distintas do antitruste tradicional. 

O deputado João Maia (PL-RN) apresentou o PL 2768/2022 perante a Câmara dos Deputados, propondo, justamente, regular, fiscalizar e sancionar as plataformas digitais que oferecem serviços ao público brasileiro (artigo 1º do PL 2768/22), inaugurando-se condições para que uma possível lei nacional voltada a regular os mercados digitais reste aprovada. 

O PL 2768/22 justifica que suas disposições possuem inspiração no DMA, mencionando que, “na Comissão Europeia, o ‘Digital Markets Act’, direcionado aos chamados ‘controladores de acesso’ (gatekeepers) no mundo digital, é bastante detalhado e foi aprovado em 2022” e que, portanto, caberia “introduzir uma regulação na linha da Comissão Europeia, mas de forma bem menos detalhada”.

O projeto tem, certamente, muitos pontos a serem aprofundados e aperfeiçoados, mas deve ser realçado o seu o mérito de iniciar a discussão de como se daria a internalização do DMA em território nacional perante o locus mais apropriado para tanto: o Congresso Nacional. O DMA é uma lei de ordenação dos mercados. Qualquer iniciativa legislativa semelhante a ser feita em nosso país precisaria, primeiramente, perpassar pela definição política de quais objetivos deverão ser perseguidos por essa nova lei. O PL inicia, portanto, uma importantíssima discussão, com vários desdobramentos futuros para a sociedade brasileira. 

O caminho escolhido pelo texto foi o de atribuir à Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) as competências que o DMA atribuiu à Comissão Europeia, optando por ampliar os objetivos definidos na lei geral de telecomunicações (Lei 9.472/1997).  

Os novos objetivos que seriam acrescidos à competência da Anatel, voltados às plataformas digitais, seriam os de garantir:  

“I – desenvolvimento econômico com ampla e justa concorrência entre os operadores, bem como entre os demais agentes econômicos afetados por suas atividades; 
II – acesso à informação, ao conhecimento e à cultura; 
III – fomento à inovação e à massificação de novas tecnologias e modelos de acesso; 
IV – incentivo à interoperabilidade por meio de padrões tecnológicos abertos que permitam a comunicação entre as aplicações; 
V – incentivo e definição de mecanismos para a portabilidade de dados”.  

O PL 2768/22 justifica que a internalização do DMA se dê sob a perspectiva de “uma regulação focada na mitigação do controle de acesso essencial das plataformas digitais”. Assim compreendida, não seria necessária a criação de um novo órgão para implementar as novas competências. Nos termos da justificativa, “em lugar de criar um novo regulador, entendemos que a Anatel já possui expertise muito próxima daquela requerida para a missão de regular plataformas digitais”.  

O histórico da Anatel é relembrado para justificar essa escolha, destacando que “basta lembrar que boa parte da regulação pró-concorrência da agência se baseou na obrigação de interconexão que nada mais é que requerer dos incumbentes, acesso à sua rede local”. 

Esse, contudo, não parece ser o caminho preferível para internalizar o DMA em nosso país. Por ora, não se pretende discutir os objetivos elencados, mas apenas o desenho geral proposto pelo projeto.

A regulação concorrencial dos mercados digitais concebida pela Europa não pode ser igualada à “regulação focada na mitigação do controle de acesso essencial das plataformas digitais”. Isso seria internalizar o DMA sob limites muitos estreitos que a regulação concorrencial de public utilities impõe. 

O DMA é uma lei essencialmente concorrencial, embasada em preceitos de mercados competitivos, concebida com escopo totalmente distinto da regulação concorrencial decorrente de situações monopolísticas em que um agente regulador determina como deve se dar o uso competitivo de infraestrutura essencial.

O Digital Markets Act não se embasa na existência de uma falha de mercado para justificar a regulação proposta pela norma. A norma busca ordenar, com base em preceitos de mercado, como os mercados digitais deverão funcionar, daí a sua vinculação à escola ordoliberal alemã e não a referenciais neoclássicos. Em resumo, o que o DMA propõe e o que marca o histórico da Anatel são concepções completamente distintas, possuindo em comum apenas a mesma expressão regulação concorrencial. 

Se a opção pela internalização do DMA no nosso país levar em conta o histórico mais próximo de exercício da competência de defesa da concorrência em situações em que há a presença de poder de mercado, não resta dúvidas de que o órgão mais vocacionado para assumir essa nova função seria o Cade. 

Ocorre que, dadas as profundas alterações que o DMA concebe para promover a defesa concorrencial nos mercados digitais, atribuir essas novas competências ao Cade teria que vir acompanhada das capacitações estatais necessárias, além de profunda reflexão antecedente se o Cade conseguiria se livrar de seu forte histórico de vinculação às premissas estabelecidas desde a Lei 8.884/94 para realizar a nova função de defesa da concorrência pela técnica regulatória ex ante. 

A convergência global sobre ordenação geral dos mercados mudou muito desde o cenário que possibilitou a edição da Lei 8.884/94 e as novas discussões sobre os arranjos concorrenciais para os mercados digitais deverão retratar também essas mudanças. 

O aprofundamento dessas reflexões fica reservado, contudo, para um momento futuro. O momento agora é de festejar a rica oportunidade que a apresentação do PL 2768/22 enseja ao nosso país, traduzindo um esforço de dotar o país de instrumentos institucionais aperfeiçoados para lidar com o desenvolvimento tecnológico dos mercados.

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