“Eu sempre soube que aquela criança que não me olhava nos olhos, cujo olhar parecia que me atravessava, tinha alguma coisa. A primeira coisa que pensei foi que ele era surdo, já que eu o chamava e ele não atendia. Tive o diagnóstico de autismo em um janeiro chuvoso quando ele tinha 3 anos e 4 meses”. Esse é o relato de Giovana de Oliveira Ribeiro, mãe de Ícaro, de 13 anos, que tem o autismo severo.
Pollyana Paraguassú, presidente da Associação dos Amigos dos Autistas do Espírito Santo (Amaes), viveu uma realidade parecida. “Meu filho tem 18 anos e descobri com 2 anos e 3 meses. Achei que ele era surdo“, conta.
Histórias como as de Giovanna e Pollyana e de outras mães e pais de autistas revelam a necessidade de atenção aos sinais para que seja possível o diagnóstico. Para difundir informações à população, a Organização das Nações Unidas (ONU) instituiu em 2007 o Dia Mundial de Conscientização do Autismo, celebrado em 2 de abril.
Neurodesenvolvimento
A psiquiatra Fernanda Mappa explica que o autismo é um transtorno do neurodesenvolvimento. A criança já nasce com essa condição e manifesta os atrasos ao longo de seu desenvolvimento.
“De forma simplificada, o autismo se caracteriza por comprometimento da expressão afetiva, da interação social e da linguagem, bem como pela presença de comportamentos e/ou interesses repetitivos ou restritos. Além de prejuízo na esfera socioemocional, pode haver também atraso no desenvolvimento cognitivo, ou seja, deficiência intelectual (ou retardo mental)”, afirma a psiquiatra.
Atualmente não existe, no Brasil, monitoramento do número de pessoas com Transtorno do Espectro Autista (TEA). Por isso, utiliza-se a prevalência do Centro de Controle de Doenças e Prevenção do governo dos Estados Unidos (Centers for Disease Control – CDC) para calcular a estimativa de acordo com a população do país. Dados americanos de estudo publicado em 2021 pelo CDC dão conta de uma frequência de um caso a cada 44 crianças de 8 anos.
No Brasil, o Censo de 2022, em razão da determinação da Lei 13.861/2019, incluirá perguntas sobre o TEA e o Brasil poderá então calcular seus próprios dados.
Primeiros sinais
Fernanda Mappa relata que o que mais motiva os pais a buscarem um serviço de saúde em busca de respostas é o atraso na fala, a dificuldade de interação social com crianças da mesma idade e a presença de estereotipias (movimentos repetitivos principalmente de balançar as mãos em situações de alegria ou mesmo de irritabilidade).
A psiquiatra lista alguns sinais que devem ligar o alerta para os pais:
- Pouco contato visual. Na amamentação, por exemplo, não acontece aquela troca de carinhos esperada e a troca de olhares.
- Ausência do sorriso social, esperado entre 2 e 3 meses em resposta a algo, como ver o rosto da mãe.
- Não atender ao ser chamado pelo nome e apresentar certa indiferença a sons, ruídos ou vozes conhecidas.
- Pouco ou nenhum interesse social. É o caso de bebê que se interessa mais por objetos, como o cabelo da mãe, do que por pessoas.
- Pouca ou nenhuma vocalização. Com 3-4 meses, os bebês emitem sons sem grandes significados, mas entre 6-9 meses, começam os balbucios “mama”, “papa”. Além do atraso na fala, pode haver a regressão da linguagem.
- Atraso no desenvolvimento da atenção compartilhada, que é a expressão das descobertas pelo olhar, gestos e emoções.
- Brincar sem dar função a um brinquedo (prestar mais atenção na rodinha do que no carrinho, por exemplo).
- Dificuldade no processo de introdução alimentar.
- Alterações no sono.
Diagnóstico
Não há ainda nenhum marcador biológico, exame de imagem ou genético capaz de, isoladamente, determinar se alguém tem ou não de TEA. “O diagnóstico é clínico, ou seja, baseado em entrevista com os pais, observação do comportamento da criança e descrição de seu exame psíquico”, esclarece Fernanda Mappa.
Para crianças inseridas em escolas, segundo a psiquiatra, um bom relatório escolar oferece informações preciosas. “Vídeos e fotos trazidos pela família também nos servirão de auxílio”, aponta.
Apesar de não haver um tempo definido para se fechar o diagnóstico, Fernanda afirma que é mais comum a partir dos 2 anos de idade, devido à falta de uma “fala útil e compatível” com a idade, bem como com outros atrasos que podem estar associados.
“A maioria das crianças manifesta atrasos no desenvolvimento entre os 12 e 24 meses. Atualmente, preza-se mais pelo conceito de intervenção precoce, ou seja, diante de atrasos nos marcos de desenvolvimento (neurodesenvolvimento) que a criança deveria alcançar e não alcançou, iniciam-se as intervenções terapêuticas mesmo sem a conclusão quanto ao diagnóstico”, explica a médica.
Níveis
Segundo o DSM-5 (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais), da Associação Americana de Psiquiatria, há três níveis do TEA: leve, moderado e severo. A classificação leva em conta a quantidade de suporte que a pessoa precisa para exercer suas atividades cotidianas e não os sintomas em si.
A pessoa com autismo nível 1 pode apresentar dificuldades em situações sociais, comportamentos restritivos e repetitivos, mas requerem apenas um auxílio mínimo para realizar suas atividades. “Podem ser capazes de se comunicar verbalmente e de ter alguns relacionamentos. No entanto, podem ter dificuldade em manter uma conversa, assim como para fazer e manter amigos. Tendem a preferir seguir rotinas estabelecidas e se sentirem desconfortáveis com mudanças”, pontua a especialista em psiquiatria infantil.
Já quem tem autismo moderado precisa de mais ajuda: A psiquiatra destaca que elas podem ou não se comunicar verbalmente e, se o fizerem, suas conversas podem ser curtas ou apenas sobre tópicos específicos. “Podem não olhar para alguém que está falando com elas, não fazer muito contato visual, não conseguir expressar emoções pela fala ou por expressões faciais”, exemplifica Fernanda, acrescentando que os comportamentos restritivos e repetitivos e o apego à rotina ocorrem em gravidade maior.
Intervenções
Intervenções precoces e intensivas são eficazes a ponto de permitir mudança de nível dentro do espectro? Fernanda Mappa explica que essa possibilidade tem a ver com a plasticidade cerebral:
“Quanto antes são identificados os atrasos, melhor será para a criança. Um conceito importantíssimo é de plasticidade cerebral, que é a capacidade dos neurônios se transformarem e se reorganizarem de acordo com os diferentes estímulos que recebem. A intervenção precoce gera ganhos significativos e duradouros no desenvolvimento da criança. Mas isso acontece preferencialmente até os 5-6 anos de idade, fase da vida da criança conhecida como “janela de oportunidade”.
O acompanhamento requer uma equipe multiprofissional.“Poderá ser composta pelo médico psiquiatra da infância ou neurologista infantil, psicólogo, fonoaudiólogo, terapeuta ocupacional e psicopedagogo. Além da família que deverá ser ativa em todo processo de intervenções e de uma escola que promova a inclusão da criança”, destaca a psiquiatra.
O tratamento pode contemplar tanto medicações quanto terapias. Fernanda Mappa explica que cada criança vai requerer um planejamento de suas terapias, que será individualizado de acordo com suas necessidades. “Para esse planejamento ser preciso, é necessária a aplicação de testes e escalas, todas com validação e evidência científica, que definirão as habilidades daquela criança, bem como suas deficiências naquele momento”, ressalta.
Fonte: ALEES