Avança na Câmara Legislativa a criação de um protocolo de proteção e apoio a mulheres que tenham sofrido ou estejam em risco iminente de sofrer assédio ou importunação sexual em locais de lazer e entretenimento no Distrito Federal. A medida consta de dois projetos de lei – um do deputado Gabriel Magno e outro do Executivo – que tramitam juntos na Casa. As proposições foram debatidas em comissão geral no plenário.
Batizado de “Por Todas Elas”, o protocolo proposto no DF tem como inspiração iniciativas semelhantes implantadas, com sucesso, em cidades como Barcelona (Espanha). O protocolo consiste em medidas a serem adotadas por bares, restaurantes, hotéis, casas de shows e outros estabelecimentos do tipo, visando a impedir violências contra as mulheres nesses espaços, bem como oferecer suporte adequado nos casos consumados.
O substitutivo aos dois projetos de lei em tramitação conjunta (PL nº 103/23 e PL nº 106/23) já foi aprovado em primeiro turno, e a expectativa é que passe por nova apreciação pelo Plenário da Casa até o final de março, em alusão ao “mês das mulheres”.
Conforme explicou o deputado Gabriel Magno, um dos autores da comissão geral de hoje, as sugestões apresentadas esta tarde serão incluídas no texto final, antes da votação em segundo turno. O distrital ressaltou a importância do debate público e das contribuições, “porque a construção de um protocolo eficiente precisa ser um pacto social de toda a sociedade do Distrito Federal”.
Ainda em sua fala de abertura da comissão, Gabriel Magno destacou alguns dados relativos à violência contra a mulher, a exemplo do levantamento do Ipea que revela que o Brasil registra 822 mil casos de estupro por ano. “Isso significa dois casos por minuto. Enquanto nós estivermos nessa comissão geral, algumas dezenas de mulheres serão vítimas de violência sexual”, afirmou.
O distrital citou, também, a pesquisa “Bares Sem Assédio”, realizada pela Johnny Walker com mais de 2 mil brasileiras. Conforme informou, o estudo mostra que 53% das entrevistadas já deixaram de frequentar bares, restaurantes ou casas noturnas por medo de ofensivas machistas, e 41% disseram só se sentir plenamente confortáveis, nesses ambientes, na presença de um grupo de amigos.
“É inadmissível a pauta da mulher ser nas páginas policiais. Nossa pauta é muito maior: temos de lutar por igualdade salarial, por mulheres em espaços de poder, por empreendedorismo. Mas ainda estamos aqui falando de violência”, lamentou a secretaria da Mulher do DF, Giselle Ferreira.
Sobre o protocolo “Por Todas Elas”, a chefe da pasta disse ser “um convite a toda a sociedade, porque a pauta da mulher é de toda a sociedade”. Ela afirmou que o protocolo poderia ser estabelecido por meio de decreto, mas ressaltou a relevância da discussão no Legislativo local: “Só vem a somar”.
Por Todas Elas
A secretária de Justiça do DF, Marcela Passamani, observou que uma mulher sofre importunação sexual a cada 15 minutos no DF. Ela detalhou a proposta do protocolo para enfrentar esse cenário. Entre as medidas a serem implementadas pelos empreendimentos de lazer e entretenimento, em parceria com o governo, está a capacitação dos funcionários do setor para identificar situações de risco às consumidoras, bem como oferecer os primeiros cuidados às vítimas.
Além disso, o protocolo estabelece o acolhimento das mulheres em local reservado. E trata do acionamento das autoridades competentes e da preservação de eventuais imagens de câmeras de segurança. Os estabelecimentos que cumprirem todos os requisitos receberão o selo “Por Todas Elas”.
A proposta foi elogiada pela coordenadora geral do Centro de Atendimento à Mulher (Ligue 180), Elen dos Santos Costa. Ela ressaltou, em especial, a previsão de capacitação dos trabalhadores para o acolhimento e completou: “O projeto chama o setor a se responsabilizar”.
“Me tranquilizou a questão de priorizar o atendimento. Se a mulher não tem esse primeiro acolhimento, ela vai para casa, muitas vezes se culpa, se sente envergonhada, guarda a situação para ela e só vai a uma delegacia quando encorajada por um familiar ou amigo. Para nós, que cuidamos da investigação, já se passou um tempo que é precioso, se perde muita coisa, prova, e a efetividade da atividade da polícia, da proteção que poderia ser conferida, se perde”, avaliou a delegada chefe adjunta da Delegacia da Mulher (Deam) da Asa Sul, Simone Ferreira de Alencar.
Para ela, o protocolo, com diretrizes claras, vai dar efetividade ao trabalho da polícia: “Ter um funcionário treinado, capacitado para atender a vítima, e um lugar reservado vai, além de encorajar essa mulher a fazer o registro, garantir à polícia a questão da preservação da prova”. E prosseguiu: “Muitas vezes, a polícia tem dificuldade com os estabelecimentos comerciais, justamente, por não ter critérios estabelecidos de preservação de imagem, de preservação da prova. Encontramos dificuldade, depois, para apurar. A vítima acaba ficando sem resposta e desacreditada”.
O presidente da Fecomércio, José Aparecido, disse esperar que o projeto seja aprovado, “mas que dê condições para os empresários fazerem essas intervenções”. “O empresário não pode assumir a responsabilidade do Poder Público, o poder de polícia, para proteger as mulheres. Com a lei, podemos ter, pelo menos, um norte para fazer interferência”, ponderou.
Sugestões
Vânia Cecília de Lima Andrade, assessora de Promoção de Direitos do Ministério da Justiça, apresentou algumas sugestões para aprimorar o protocolo. Sobre a capacitação dos funcionários, ela sugeriu que seja prevista a regulamentação de uma matriz curricular mínima: “Para ter qualidade adequada”.
Além disso, ela defendeu que o acionamento das autoridades competentes seja incondicional, independente da vontade da vítima; e destacou a importância de se garantir uma funcionária do sexo feminino quando da condução da vitimada ao lugar reservado.
Por sua vez, o presidente do Sindicato dos Hoteis, Bares e Restaurantes (Sindhobar), Jael Antônio da Silva, considerou a proposta “meritória”, mas sugeriu que os cartazes a serem afixados, tratando do atendimento à mulher que se sinta em situação de risco no interior do estabelecimento, sejam produzidos “em cooperação” com os órgãos públicos. “A imputação desse custo ao empresário pode ser dividida”, considerou.
Do papel à realidade
“É uma alegria ver que o Estado está se mobilizando para enfrentar esse problema de forma mais séria”, afirmou o juiz titular do Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, Bem-Hur Viza. Mas ponderou: “No âmbito da polícia, a lei Maria da Penha fala que vai ter espaço de acolhimento, que a mulher vai ser atendida por uma agente. Mas sabemos que a Delegacia da Mulher funciona de 12h às 18h. E acabou. Se nós só criarmos mais leis, mas não criarmos estrutura para que sejam implementadas, não teremos avanços”.
A deputada federal Erika Kokay foi na mesma linha: “Temos a terceira melhor legislação do mundo de combate à violência doméstica, que é a Lei Maria da Penha. Precisamos fazer que ela se transforme numa realidade, e precisamos ampliar o conceito, que é o conceito de que a sociedade é sexista, é machista, subalterniza as mulheres, quer nos silenciar, nos amordaçar, dominar as nossas existências”.
Sociedade patriarcal e machismo
Além da implementação das leis, na prática, os participantes da comissão geral apontaram o cerne das numerosas violências contra a mulher: o machismo.
Representando o deputado Ricardo Vale, a jornalista Maria Paula de Andrade defendeu que o “mês da mulher” deve ser um recado para os homens: “Vocês podem até nos dar flores, mas assegurem o respeito e garantam os direitos de todas as mulheres: sejam elas cis, trans; homo, hetero. Respeite a moça 365 dias por ano”.
“O combate ao sexismo, à misoginia e a todos os tipos de discriminações contra o gênero feminino é o alvo central dos debates”, prosseguiu. Maria Paula ainda completou: “De que servem as leis exemplares quando as mulheres já estão mortas? Eu não quero mais chorar em cima do caixão das minhas. De que servem tantas leis se o machismo anda solto por aí? Eu não sou mulher só no mês de março. E não sou mulher negra só em novembro”.
“A sociedade machista e patriarcal precisa ser combatida. Não estamos combatendo os homens, mas o machismo. E, para mudar a situação, não bastam políticas públicas específicas, é importante a participação feminina em espaços decisórios”, pregou Nildete Santana, da Comissão da Mulher da OAB-DF.
O papel da educação na construção de uma sociedade mais igualitária foi defendido por vários participantes da comissão geral. “A mudança começa na escola, desde criança, falando sobre isso. O combate à violência, ao feminicídio, e a mudança da estrutura de poder começam ali”, ressaltou Elen Costa, do Ligue 180 (canal de denúncias de violações de direitos das mulheres).
O presidente do Sidhobar, Jael dos Santos, concordou: “O que temos de fazer é acabar mesmo com o machismo e patriarcalismo. Como fazer isso? Essa é uma questão cultural, de educação. Não é uma lei, por mais que seja protetiva, que vai mudar esse status quo. Temos de fazer um trabalho de base, imediatamente, nas escolas”.
Um dos autores da comissão geral, ao lado de Magno, o deputado Ricardo Vale (PT), pregou que a luta contra as violações de direitos das mulheres tem de ser “permanente”. O distrital apontou que a Casa está com uma campanha institucional contra o machismo.
Fonte: CLDF