“O Rivotril está para a mulher, assim como a cachaça está para o homem.” A frase, colhida por uma pesquisadora com um médico, ilustra como a condição feminina, que coloca as mulheres em situação de maior fragilidade, é vista como patologia e, muitas vezes, como um caso de saúde mental.
Submetidas a dupla ou tripla jornada, pressionadas por um ideal de corpo perfeito, responsáveis pelo cuidado com crianças e doentes e vítimas de machismo, entre outras questões femininas, as mulheres adoecem.
Negras e pobres vivem drama ainda maior. Mas, embora o problema seja social, o remédio é pessoal.
Esse olhar feminista sobre a luta antimanicomial pautou audiência da Comissão Extraordinária das Mulheres da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) nesta segunda-feira (18/6/18). A reunião foi proposta pelas deputadas Marília Campos (PT), presidente da comissão, Geisa Teixeira (PT), vice-presidente, e Celise Laviola (MDB).
A psicóloga e pesquisadora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Melissa Oliveira, fez um retrospecto das primeiras associações entre mulher e loucura. Mais recentemente os hormônios foram usados para justificar alterações de toda ordem, nessa associação direta entre o corpo da mulher e sua condição mental.
“O Brasil foi referência, até 1950, na retirada de útero, ovário e grandes lábios da vagina como forma de tratamento mental”, apontou a psicóloga, organizadora do livro “Luta Antimanicomial e Feminismo: discussões, de gênero, raça e classe para a reforma psiquiátrica brasileira”. Toda essa “verdade científica”, segundo ela, forjou uma naturalização do descontrole e da loucura da mulher.
Ainda hoje, segundo Melissa, muitos profissionais de saúde acreditam que a atividade sexual das mulheres deve ser controlada, para o benefício mental.
“O resultado é que as mulheres tomam duas vezes mais medicamentos ansiolíticos e psicotrópicos do que os homens e usam essas drogas por um tempo 75% maior”, afirma.
Situação é pior para negras, pobres e usuárias de droga
Se a condição feminina pode ser um estigma, a mulher negra ou usuária de droga vive uma situação dramática e diferente dos homens na mesma situação. A observação é de Eliane de Souza Pimenta, psicóloga da Rede de Saúde Mental de Contagem, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, e coordenadora do Curso de Psicologia da Una.
“A política pública precisa focar nisso, conectar as redes de proteção à violência doméstica com oportunidades para que as mulheres reconstruam suas vidas. As que têm os filhos retirados na maternidade são, em sua maioria, pobres e negras. Às vezes a falta de recursos é confundida com negligência”, afirma Eliane.
Para Marta Soares, ativista da luta antimanicomial, o racismo não foi superado, mesmo depois de 130 anos de abolição da escravidão. Ela acrescenta que a negação da existência do racismo pela sociedade dificulta seu combate. “Temos que criar espaço para a organização dessas mulheres, para seu empoderamento estético e afetivo”, pondera.
A médica Ana Marta Lobosque, também ativista da causa e psiquiatra do Centro de Referência em Saúde Mental da Criança e Adolescente em Belo Horizonte, completa que todas as mulheres e homens têm que ser solidários com aquelas que sofrem a opressão de classe e de cor e que são diagnosticadas como oprimidas.
“A depressão é uma forma de nomear infelicidade. Não é doença. É a vida precisando mudar”, afirma a psiquiatra. Ela lista entre os problemas as mães de crianças com sofrimento mental e que têm o pai ausente, as que dependem financeiramente dos maridos e as que tiveram os filhos retirados na maternidade.
Marília Campos ponderou que a medicação, muitas vezes, busca ainda manter a mulher sobre controle, sem questionar o sofrimento ou a condição. “Pessoas de todas as idades estão tomando remédio para depressão, sejam crianças com diagnóstico de hiperatividade ou o jovem que discorda do ensino médio”, enumerou.
Cartilha – A naturalização da “loucura feminina”, que faz com que esses problemas transversais passem desapercebidos nos atendimentos, levou o Conselho Regional de Psicologia (CRP) a elaborar uma cartilha para seus filiados. Para Clotilde Aparecida Nunes, da Comissão de Mulheres e Questões de Gênero do CRP, as mulheres, nesse contexto, são invisíveis.